As estranhas semelhanças entre a história do rock e a dos jogos modernos 29 de abril de 2022

Se você começar a comparar a evolução dos jogos modernos, começando com o Catan em 1995, com a do rock ‘n’ roll, vai notar que as semelhanças são… assombrosas.

Sim, os jogos modernos são bem mais recentes, não temos ainda nem metade da história do rock. Mas a história que foi traçada até agora é cheia de paralelos.

O início

O rock começou nos anos 50, nos EUA, e imediatamente inaugurou uma nova era na história da música americana. Elvis, Chuck Berry, Little Richard, Buddy Holly fizeram tudo o que se produziu antes ficar imediatamente antigo. Se você procurar as listas de críticos sobre os melhores discos ou músicas da história, elas praticamente ignoram o que veio antes dos anos 50.

Reiner Presley ou Elvis Knizia?

Já os jogos modernos ganharam projeção nos anos 90, na Alemanha. Designers como Reiner Knizia, Klaus Teuber e Wolfgang Kramer começaram a lançar jogos com regras simples, porém pouca sorte e conflito indireto. Quem jogava percebia imediatamente: tanto os jogos de mercado de massa quanto os antigos jogos de hobby, cheios de tabelas para consulta, ficaram imediatamente ultrapassados.

A segunda geração

Uma década depois, o rock americano começou a perder o fulgor. Elvis entrou para o exército. Jerry Lee Lewis casou com a prima. Mas sua música foi ouvida do outro lado do oceano: os ingleses começaram a tocar rock e estouraram de volta nos EUA com uma versão anglicizada do que os americanos iniciaram. O movimento foi batizado de Invasão Britânica: Beatles, Rolling Stones, Who, Kinks levaram o rock ao auge do sucesso e da histeria.

Do lado de cá, em 2003 foi lançado Amun-Re, considerado o último grande jogo antes da “década perdida” de Reiner Knizia. Teuber a essa altura fazia apenas expansões, e Kramer, apesar de muito ativo, não fez mais nada com o mesmo impacto de El Grande ou Princes of Florence. 

Mas os grandes jogos não deixaram de ser feitos: autores franceses e americanos absorveram a revolução alemã e renovaram o catálogo dos jogos modernos com clássicos como 7 Wonders, Ticket to Ride, Dixit, Pandemic, Dominion.

Essa Invasão Franco-Americana tinha um trunfo: manter as inovações de seus antecessores, mas adicionando temas mais variados e enorme preocupação estética. De repente, os jogos de paleta bege sobre trocas no Mediterrâneo e cidades medievais estavam retratando passeios turísticos pelo litoral japonês em um super impactante tabuleiro quase todo branco (Tokaido). Sem falar nas ilustrações surrealistas das cartas enormes de Dixit, ou do panda miniatura e seus bambus em Takenoko.

Bauza, Alan Moon, Cathala, Leacock e seus colegas tomaram a Alemanha de assalto, ganhando 6 Spiel des Jahres entre 2004 e 2013 – quase a mesma quantidade ganha por autores estrangeiros nos 25 anos anteriores do prêmio. Os jogos modernos, assim como o rock, mudaram muito após a Invasão.

Beatles de um lado, Cathala + Bauza do outro

Sofisticação e pirotecnia

Pouco tempo depois da Beatlemania, o rock começou a se sofisticar. A releitura britânica do rock ‘n’ roll começou a querer dar ares de arte erudita a um ritmo nascido popular. Músicas cada vez mais longas, com solos de guitarra acelerados, falando sobre mitologia nórdica em vez de I wanna hold your hand. Rock Progressivo. No início dos anos 70, os Beatles já tinham acabado, e quem predominava eram Pink Floyd, Yes e Emerson Lake & Palmer. Bandas de difícil assimilação, mas adoradas por quem conseguia entrar.

Os anos 70 trouxeram também o rock de arena, de shows espetaculosos e bandas posudas mas com som fácil e relativamente conservador, como Kiss, Van Halen e Queen.

Os jogos de tabuleiro, já no final dos anos 00, começaram também a se sofisticar. A complexidade aumentou, a interação diminuiu. A tradição alemã dos anos 90 de jogos que podiam ser jogados em família entrou em declínio. Os jogos eram de difícil assimilação, mas quem se desse ao trabalho, encontraria um nível de estratégia superior.

Capa de album do Jethro Tull e de Great Western Trail

Agrícola foi talvez o primeiro a atingir grande sucesso mesmo sendo muito complexo. Na esteira dele, vieram dezenas de outros. E a complexidade, assim como os solos de guitarra, ia aumentando. Hoje os grandes expoentes desse estilo de jogo – mas longe de serem os únicos – são Vital Lacerda e a editora Splotter.

Já os jogos de tabuleiro “de arena” vieram um pouco depois, mas com ainda mais potência, através da força do Kickstarter. O espetáculo – miniaturas enormes e detalhadas, dúzias de cenários e toneladas de extras – passou a ser tão ou mais importante que a jogabilidade.

Volta às origens

Você sabe o que vem na história do rock no final dos anos 70, não sabe? Isso mesmo, o punk rock.

Os punks tinham horror à erudição dos progressivos e ao espalhafato do rock de arena. Voltaram aos 3 acordes e tocavam eles mal – com orgulho. Não precisa ser estrela nem se formar em escola de música pra ser roqueiro. Depois do punk, Deep Purple, Led Zeppelin, Aerosmith, todos viraram dinossauros.

Nos paralelos entre o rock e os jogos modernos, está faltando alguém pra ser os Sex Pistols. Jogar a caixa do Agra do telhado como eles pichavam I HATE em cima da camisa do Pink Floyd.

Pela cronologia, já era para ter acontecido. Os punks eclodiram em 1976, 21 anos depois de Bill Haley explodir com Rock Around the Clock. 21 anos depois de Catan foi em 2016. 

Está faltando alguém para quebrar guitarras no mundo dos tabuleiros

Candidatos a punks

Será que não teremos um movimento punk? Ou será que está prestes a acontecer? Quem seriam os principais candidatos?

Por um tempo, pensei que podiam ser os jogos legacy. Rasgar carta, riscar tabuleiro, parece ter tudo a ver. Mas os legacies rapidamente ficaram mais “domados”. Poucos são os que se arriscam a mandar você picotar alguma coisa hoje em dia. E nenhum deles quebrou as barreiras de entrada para o hobby, pelo contrário: legacies tendem a ser mais caros e mais complexos do que jogos normais, fora o compromisso de tempo necessário.

Depois achei que podiam ser os roll and writes. Nada mais back-to-basics do que um jogo de papel, lápis e alguns dados. Mas eles acabaram ficando todos meio parecidos entre si (bom, justiça seja feita, bandas punk também são meio parecidas), e mais do que isso, nenhum deles teve a força de um Ticket to Ride ou um Carcassonne para romper barreiras e seduzir gente de fora do hobby. Não adianta começar um movimento punk se pouca gente estiver prestando atenção.

Hoje minhas esperanças estão com Elizabeth Hargrave e seu Wingspan. 

Wingspan vendeu mais de 1 milhão de cópias em 3 anos – isso é um sucesso no mesmo patamar de Pandemic, Dixit ou Azul. E teve um apelo enorme fora do nicho: saiu em inúmeros artigos de jornal, foi jogado por celebridades, mesmo não sendo um jogo tão simples.

O tema de natureza, que fez muitos editores torcerem o nariz quando ela procurava uma casa para o jogo, talvez seja sua maior sacada. Eram poucos antes do Wingspan, e depois dele, há cada vez mais. 

Desconfio que o jogo tenha começado um discreto movimento punk. Ele evita os temas medievais, espaciais, chtulu, que só apelam ao público nerd, e volta ao básico, da mesma forma como os Ramones queriam só cheirar cola (Now I Wanna Sniff Some Glue) em vez de discursar sobre Tristão e Isolda.

Calico, Cascadia, Ilha dos Gatos, New York Zoo, Mariposas, são todos jogos sobre natureza, de peso leve para médio que tiveram grande sucesso depois de Wingspan. 

Pode ser esse o de-volta-ao-básico que os jogos modernos estão precisando? Ou é só wishful thinking?

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