Quando a falta de repertório pode ajudar a criar jogos 15 de dezembro de 2021
Reiner Knizia tem uma frase famosa que muita gente fica chocada ao ouvir. Ele diz que quase não tem tempo de jogar jogos de outros autores, e que há um ponto positivo nisso.
Segundo ele, na hora de resolver um problema em um jogo, é preciso ser criativo. Mas se você já conhecer soluções propostas por outros designers para o mesmo problema, elas viram obstáculos para pensar em ideias novas.
Ou seja, o excesso de repertório pode ser prejudicial para criar jogos originais.
Muita gente, inclusive outros designers de renome, criticou a postura do Knizia. Os argumentos a favor de ter um amplo repertório são conhecidos:
- Conhecer muitos jogos permite saber se a sua ideia já não foi desenvolvida em algum outro canto, por outra pessoa.
- Ficar atualizado sobre as novidades recentes ajuda a medir a temperatura do mercado, saber o que os jogadores e as editoras estão buscando.
- E por fim, talvez o mais importante: ter um amplo conhecimento de mecânicas nos dá ferramentas para resolver rapidamente os problemas que o Knizia prefere abordar sozinho. Se há um desequilíbrio causado pela ordem de turno, por exemplo, quem conhece muitos jogos sabe que você pode resolver isso com leilão, recursos iniciais assimétricos, restrições no turno inicial, entre outros.
Eu estou com a maioria que acha que repertório é fundamental. Mas compreendo a posição do Knizia, e vim hoje aqui compartilhar a história de criação de um jogo meu que acho que ilustra bem isso.
Esse jogo é o meu lançamento mais recente, Papertown, saindo agora pela Buró.
Papertown tem uma história longa e conturbada, que começou em 2007, na época que eu tinha acabado de conhecer os jogos modernos.
O que mais me orgulha hoje no Papertown é que eu o considero um jogo extremamente original.
É um jogo de colocação de tiles, como outros jogos meus (Camisa 12 e Dead & Breakfast), mas ao contrário destes, sem a estrutura que costuma estar por trás da maioria desses jogos:
- Cada jogador constrói o seu próprio painel de peças
- A pontuação se dá pela forma como essas peças são colocadas: áreas, maiorias, rotas, adjacências, set collections, entre outros.
A maior parte dos jogos de colocação de peças se enquadra nessas 2 características: Kingdomino, Castles of Mad King Ludwig, Calico, Isle of Skye, e assim vai. E por um bom motivo: é uma estrutura testada e aprovada, que fornece uma ótima base para um jogo de colocação de peças funcionar. É difícil para mim, hoje, criar um jogo desse tipo sem usá-la.
Papertown não tem nada disso, pois quando comecei a fazê-lo, eu sequer entendia direito em que consistia essa mecânica.
Por isso, digo que se eu tivesse na época o repertório que tenho hoje, o jogo seria bem diferente, ou sequer existiria.
No início, como hoje, cada jogador tinha objetivos (sequências de 3 peças) que devia tentar formar no painel comum. O principal problema do jogo era que, quanto mais o tabuleiro se expandia, mais fácil ficava de fazer novos objetivos, afinal havia mais e mais possibilidades. Do meio do jogo em diante, fazia-se praticamente um objetivo por turno.
Além disso, o jogo era monótono, pois pedia dos jogadores apenas a habilidade de reconhecer padrões num painel cada vez maior e complexo. Não havia nenhum elemento estratégico.
Esses problemas foram resolvidos com a adição dos meeples de população, e a transformação das cartas de objetivos em peças que entram no tabuleiro quando completas. De repente, o jogo não era apenas sobre reconhecer padrões, mas montá-los de forma estratégica para sobrepor a população do seu adversário. E os objetivos eram peças neutras que continham o crescimento do jogo, mantendo o número de possibilidades de colocação sempre mais ou menos igual.
Eu duvido que tivesse chegado a essas soluções tendo o repertório que tenho hoje. Existem atalhos, e eu não conhecia nenhum deles. Foi uma jornada longa, cheia de becos, toda esquisita. Mas por outro lado, a solução é única, como o Knizia gosta.
Eu recomendaria essa abordagem para qualquer pessoa que esteja tentando levar a sério uma carreira como autor de jogos? Jamais.
Mas é bom ter sempre a frase do Knizia na cabeça. O que eu tirei dela, no final das contas, é que repertório não pode ser muleta para acomodação.
Usá-lo para fazer jogo no piloto automático, variações de fórmula sem nenhuma reflexão, não contribui em nada nem com o mercado nem com sua própria evolução como autor.
O que nos faz crescer é transformar repertório em inovação, subir nos ombros de gigantes para trazer ao seu jogo a identidade e originalidade que ele precisa.